Ano: 2021

Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital

A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital foi aprovada pela Lei n.º 27/2021, de 17/05.

Consagra importantes direitos e medidas de proteção dos internautas e demais utilizadores das redes digitais.

A eficácia plena daquelas medidas aguarda ainda regulamentação, prevista para os próximos 6 meses.

Está acessível em www.dre.pt

princípio da livre apreciação da prova

Código de Processo Penal, in dubio pro reo, presunção de inocência

No processo judicial antigo, o julgamento estava submetido a um sistema de prova legal, que determinava as condições em que cada prova podia ou não ser admitida e os termos em que podia ser valorada. O liberalismo introduziu, em rutura com aquele, o princípio da livre apreciação da prova pelo tribunal, reduzindo as proibições de produção e valoração da prova. Numa aspiração racionalista, o julgamento depende da boa apreciação da lógica, da experiência, da ciência e do bom senso, que deve transparecer e parecer adequada na fundamentação da sentença.

Por razões históricas, o princípio da livre apreciação da prova conheceu – e conhece ainda nalguns países – restrições em sede criminal (os processo cíveis, pela sua própria natureza (que aqui não aprofundamos), são menos sujeitos a erro de julgamento de facto, e o erro é aí, por regra, menos danoso). O liberalismo, assentando no indivíduo, a quem atribui igual dignidade e autonomia, protegeu-o de potenciais abusos, consagrando princípios como o da presunção de inocência e o da condenação apenas quando a culpa se mostra provada para além de qualquer dúvida razoável (in dubio pro reo). Aqueles princípios enformam as cartas de direitos internacionais e a nossa Constituição da República.

Portugal conheceu até 1974 um processo penal do tipo autoritário, seguido de um período convulsivo de intenso debate para a construção de um processo democrático, com igualdade de armas entre a acusação e a defesa. A consolidação do regime político atual viria a mitigar o sistema que o poder designava como excessivamente garantístico, impondo o Código de Processo Penal de 1987, de base utilitária, pragmático e em larga medida protetor do Ministério Público, que goza de discricionariedade quase insindicável em muitos casos. Com a reforma de 2007, sobretudo, o Supremo Tribunal de Justiça deixou de julgar a maior parte dos recursos penais, e o Código tornou-se dominante, subordinando aqueles princípios do liberalismo a uma disciplina estrita de atos, alheados das consequências processuais.

O princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127 do código, ganhou assim uma dimensão inaudita: “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Puro ato de poder, e de saber fazer (na medida em que a boa fundamentação se torna praticamente a única justificação da sentença).

Como o juiz descobre os factos através das provas produzidas em audiência e estas são, bastas vezes, insuficientes, admite-se o julgamento por meros indícios, prova circunstancial e presunções naturais em matéria civil. Como em muitos crimes a prova testemunhal é dominante, aceita-se que o juiz declare, com base na sua intuição, que a de uns é “séria, credível e reveladora do conhecimento direto dos factos” e a de outros nem tanto. O princípio da livre apreciação da prova é assim um exercício sensível, que apenas enfrenta o rigor da fundamentação. Por exemplo, quando a fundamentação não expressa dúvida sobre os factos que declara provados, fica excluído o princípio in dubio pro reo, ainda que outras soluções e hipóteses pareçam plausíveis.

A preparação do julgamento passou a ser, daquele modo, absolutamente fundamental. Todavia, a nossa sociedade não interiorizou ainda, por falta de informação credível, este aspeto da descoberta da verdade material no processo crime.

Teletrabalho e Subsídio de Refeição

Tem vindo a lume alguma polémica em torno do direito a perceber subsídio de refeição por parte do trabalhador em regime do teletrabalho.

A matéria está em vias de regulamentação quer ao nível da União Europeia, quer ao nível do legislador português. Reveste no entanto interesse doutrinário na medida em que desvela certa tendência de reinscrição de conceitos e valores no quadro tradicional, que tem vindo a ganhar expressão jurídica.

Por força do artigo 260,2 do Código do Trabalho, o subsídio de refeição é equiparado a subsídio de transporte e outros, “com as necessárias adaptações”. Aquela expressão, algo nebulosa, ampara o entendimento de que o subsídio não integra, em regra, o conceito de retribuição, a menos que, na parte que exceda o seu montante normal, tenha sido previsto no contrato de trabalho ou se deva considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador (Acórdão da Relação de Coimbra de 27-10-2016).

Faz-se atualmente a seguinte interpretação: o subsídio de refeição constitui uma “comparticipação nas despesas resultantes de uma refeição tomada fora da residência habitual, nos dias de prestação efetiva de trabalho” (preâmbulo do Decreto-Lei 57-B/84, de 20.02, aplicável ao trabalho em funções públicas, adotado pela jurisprudência para definir idêntica compensação em funções privadas). Não integra o conceito de retribuição, pelo que não está protegido pelas normas constitucionais (artigo 59,1,a) da Constituição) e internacionais. Daquele modo, quando o trabalho é prestado em casa, não é devido o subsídio.

Na era industrial, as cantinas representavam uma forma de pagamento de remuneração em espécie, no interesse do empregador. Já na função pública, as cantinas representavam privilégios dos trabalhadores das cidades sobre os da província. O subsídio de refeição teve origem histórica nas reivindicações dos trabalhadores pela justa retribuição e pelo trabalho condigno. Assumiu interesse público, por assegurar a alimentação dos trabalhadores vulneráveis, também em vista da produtividade. E serviu de prémio à assiduidade, na medida em que compensa trabalho efetivo. Hoje perdeu aquela carga político-social e não atende a eventuais custos acrescidos de alimentação. Despido da ganga doutrinária, tem por razão de ser simplesmente a redução de encargos com impostos e indemnizações.

É de todo irrelevante para efeitos de direito ao subsídio que o trabalhador tome ou não refeições, em casa, na rua ou no trabalho. Requisito único é que preste trabalho efetivo, nos termos regulamentados. Tanto assim se entende que os trabalhadores que podem deslocar-se a casa no intervalo para almoço, e são milhares em Portugal, não deixam de perceber o dito subsídio, de modo inquestionado. E esta prática comum e habitual integra a interpretação das normas que regulam o subsídio. Verifica-se assim uma presunção de que “deva considerar-se pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador” (artigo 260,1,a) do Código do Trabalho), embora dependente do trabalho efetivo, quando tem valor inferior ao da isenção de imposto.

O teletrabalho não tem de ser prestado em casa do trabalhador e confere os mesmos direitos dos demais trabalhadores (artigos 165 e 169,1 do Código do Trabalho). Tanto bastaria para reconhecer o direito a subsídio de alimentação no regime de teletrabalho, quando devido aos restantes regimes de trabalho, sobretudo quando o trabalhador é sujeito a prestar trabalho durante o intervalo de descanso (artigo 213 do Código do Trabalho). Aliás, ainda que em casa, o trabalhador sofre da mesma perda de disponibilidade para preparar refeições que o trabalhador que se desloca à empresa e se faz acompanhar da sua marmita ou que acorre ao restaurante.

De iure constituendo, o subsídio de refeição deveria dissolver-se na retribuição. A tendência para negociar direitos até à mais ínfima parcela dita porém a sua perpetuidade. Não se estranhará pois que não venha a ser pago no teletrabalho. Todavia, afigura-se que Portugal seria condenado nas instâncias internacionais se tal prática predominasse em certos regimes de teletrabalho, em especial no trabalho prestado em funções públicas. Aguardemos a próxima regulamentação.