A defesa do arguido no inquérito penal

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2023, de 9 de junho, veio uniformizar a jurisprudência no sentido de fazer depender a valoração das declarações do arguido prestadas no inquérito penal da efetiva reprodução em audiência de julgamento. Com fundamentação superior, derrota o vulgarizado entendimento de que o tribunal poderia “ouvir em privado” a gravação e formar convicção sem participação da defesa do próprio arguido. Tínhamos anteriormente que, para efeitos de recurso sobre matéria de facto, sobrevalorizavam-se as preocupações de imediação e oralidade que haviam impressionado o juiz de julgamento nas suas consagradas mas indescritíveis subtilezas, a ponto de se negar a reapreciação da prova, enquanto, para efeitos de audição de um depoimento gravado, se fazia tábua rasa das mesmas preocupações.

O processo penal na fase de inquérito está na disponibilidade do Ministério Público, que busca e colhe as provas que entende, a fim de concluir pela acusação ou pelo arquivamento – é a fase acusatória. Só no julgamento tem o arguido pleno direito ao contraditório, termo este que deixa entrever a sua fraca posição no processo penal clássico. Contraditar, negar, pôr em causa, silenciar são direitos reativos do arguido, que nascem da presunção de inocência conferida tabelarmente e com alguma incongruência, posto que a acusação a coloca necessariamente em crise.

É fácil de perceber que aquela estrutura processual – fase acusatória seguida de fase contraditória – é a que mais convém à perspetiva policial. O inquérito não encontra estorvo e o Ministério Público reforça na medida que quiser o conjunto de provas destinadas a fundar a condenação do arguido, sem se preocupar com outras pistas ou versões. O juiz recebe um dossier documentado antes de ouvir o arguido. A defesa fica submetida à matéria da acusação, que é o objeto do processo, e é estreitada às questões da prova. Daí por exemplo o descrédito habitual do álibi ou a displicência das provas colaterais. Daí também a diferente estrutura de pressupostos dos crimes comuns, mais simplificada, relativamente aos crimes financeiros, mais especiosos. A desmontagem da versão da acusação é menos provável nos crimes comuns. Importa pois ter presente o tipo de crime, cujo desenho visa facilitar a condenação ou pelo menos a acusação, mais nuns casos que noutros, dir-se-ia mais nos casos de brado. A estrutura acusatória convive de braço dado com o erro judiciário e favorece a confissão plena (quando o arguido sente que não escapa da pena, pode preferir confessar os factos, incluindo a parte que não lhe é imputável, para beneficiar de maior clemência). Crer que há “igualdade de armas” entre a acusação e a defesa é pueril e pusilânime, a um tempo.

Dependendo dos casos concretos e das particularidades da vida, o arguido pode ter interesse em colaborar com a investigação na fase de inquérito. O supra citado acórdão refere aqueles casos antigos em que o arguido confessava para conseguir o desinvestimento na recolha de prova, de modo a obter ganho pelo silêncio aquando do julgamento. Mas as situações eram muito mais variadas e complexas.

O legislador tem vindo a desfazer a aparência democrática e participativa do Código de Processo Penal, de 1987. Sucessivas revisões têm reforçado o poder do Ministério Público. As declarações do arguido no inquérito são, desde 2013, submetidas a gravação, dirigidas por um procurador ou por um juiz e reproduzíveis em audiência de julgamento. O arguido, tendo falado em diversos momentos ou não, é confrontado com as suas próprias contradições e passa a ser objeto de prova. A declaração que lhe for mais favorável tende a ser desconsiderada e a sua própria dignidade é diminuída pelas tentativas de justificar um segmento de depoimento face a outro. À partida pareceria que ocorria aqui uma violação do direito de defesa mas a justa ponderação da violação do fair trial e do “overall fairness” test é dificultosa, dispendiosa e ainda imberbe no processo penal português.

Generalizou-se então a tendência dos arguidos para a não colaboração com o Ministério Público na fase de inquérito – e terá sido esse o real propósito (economicista) daquela alteração legislativa. O risco da contradição, até porque decorrem anos entre declarações, como o risco de aproveitamento desadequado de declarações parcelares tem aconselhado o silêncio. No entanto, nem sempre deve ser mantido tal posicionamento. No fundo, sugere-se maior estudo de caso desde as primeiras notícias, a fim de proporcionar uma estratégia adequada, nem sempre reduzida à passividade, nem sempre reconduzida à prestação de declarações.

Totalitarismo

Os direitos humanos isolam cada indivíduo numa relação singular com o Estado (vide Paolo Prodi, Uma História da Justiça). Qualquer que seja a conceção desses direitos, uma atribuição do Estado ou um direito natural anterior, os indivíduos estão na dependência das interpretações que vão sendo feitas, não tanto sobre o teor, como sobretudo no que respeita à precisa delimitação e efetiva concretização da esfera de liberdade que lhes é reservada. A vacuidade apalermada de abundantes alfarrábios, como o gigantesco conjunto de ensaios compilado em vários volumes por Pinto de Albuquerque (Comentário à CEDH e à PA), nada mais faz do que assustar, na perspetiva do utente, enquanto abre sugestivas nuances para futuras derrogações, à medida dos interesses estatais que vierem a estar em jogo.

Como observa argutamente Umberto Galimberti (L’Uomo Nell’Età della Tecnica, p. 714), não ganhámos ainda consciência de que estamos disponíveis para aceitar o totalitarismo técnico generalizado, que não carece de qualquer ideologia, nem de fundamentação ética para se impor. Acrescentamos, para se sobrepor àqueles direitos humanos oitocentistas, sempre tão mal configurados e delimitados.

Vem a propósito o Green Pass e a obrigatoriedade vacinal das políticas anti-covid. A saúde, enquanto bem público, derroga o direito individual à saúde, às crenças e ao próprio corpo, mesmo quando subsistem dúvidas sobre a eficácia ou sobre efeitos secundários negativos das medidas públicas. Assim foi decidido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nos acórdãos Vavřička and Others v. The Czech Republic e Zambrano v. France. A tecnologia do Green Pass europeu foi recentemente adotada pela ONU, para ser aplicada no mundo em caso de novas epidemias. O nosso Tribunal Constitucional preocupou-se com as restrições de circulação impostas em razão do covid, mas declarou inconstitucionais, com sobressaltos e acórdãos contraditórios, apenas os confinamentos sem base legal ou judicial (decorrentes de medidas administrativas), acabando por perfilhar a jurisprudência europeia e abrindo a estrada das futuras restrições aos direitos individuais.

Não se trata aqui de apurar se as medidas adotadas foram ou não as adequadas, questão política e também técnica. Do ponto de vista jurídico, observa-se apenas como a disponibilidade da tecnologia acarretou um imenso combate às pessoas (na verdade não se combatem vírus, eliminam-se). Vigilância, confinamento, perseguição criminal, uma enorme máquina pública de controle da população e de cada indivíduo em particular foi posta em ação com uma facilidade inaudita, pela primeira vez na história – e quase sem sentido crítico.

Pergunta bem Umberto Galimberti: “Que coisa a técnica pode fazer de nós?”. Estamos já desprovidos de defesas, mais individualmente isolados que nunca, aguardando sem juízo pertinente o próximo exercício da era da técnica.

CPAS – Uma Instituição a Extinguir

Polulam organismos confiscadores de rendimentos dos particulares à conta de bruxuleantes armadilhas contabilísticas. A CPAS – Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, que terá sofrido sério revés na crise de 2008, permitiu ao longo de décadas que alguns advogados jamais tivessem prestado contribuições, como por outro lado aceitou que, no final da carreira, outros as satisfizessem, para dilatarem as pensões. Hoje, com dezenas de milhares de contribuintes, não se compreende a sua existência. Pensões mesquinhas – cerca de ¼ inferiores às projetadas em 2006 – e atualizações após reforma, para aqueles que quiserem continuar a contribuir, exatamente iguais ao valor da respetiva contribuição, portanto, com zero vantagem.

O único benefício atual é a possibilidade de aposentação aos 65 anos. No mais, sobram inconvenientes, na acumulação com outras atividades e na falta de proteção contra as surpresas da vida.

Enquanto instituição, aplica-se-lhe ipsis verbis o princípio da transparência política: o visível é a superfície da opacidade.

Eutanásia e Distanásia

Foi publicada a lei 22/2023, de 25 de maio, que regula os procedimentos de morte voluntária de doentes terminais. Consagra o direito a morrer, por vontade expressa do próprio, nos padecimentos irreversíveis medicamente atestados. As condutas que contribuem para tal desfecho deixam de ser criminalizadas.

A lei tem por correlato não escrito o direito a viver, ainda que se demonstrem padecimentos equivalentes, se a vontade do doente não é expressa no sentido da morte.

Passa a poder criminalizar-se a prática recorrente dos serviços de saúde de não ministrar aos doentes graves meios de tratamento dispendiosos ou invasivos. Por exemplo a decisão de não submeter à câmara hiperbárica um doente diabético – geralmente tomada pelos custos que envolve – pode configurar um crime de homicídio por omissão, se não for previamente obtida a aceitação expressa do doente.

Uma vez instituído aquele procedimento para apurar a eutanásia, tem-se por assente o primado do direito a viver em assistência hospitalar, ainda que em distanásia, que é o que o legislador na realidade vem estabelecer de modo indubitável.

Liberdade Contratual

Liberdade é o nome de um poder, de um domínio. Enquanto domínio individual sobre si próprio, é não estar à disposição de outros. No domínio coletivo, é o poder de sujeitar os outros, de tomar, apropriar-se, obter obediência. Politicamente, é o direito dos indivíduos serem defendidos de arbítrios que ofendem a sua autonomia, portanto a submissão aos poderes estatais que sustentam o protecionismo, as medidas securitárias, a responsabilidade. A liberdade depende da relação ou posição que cada indivíduo tem ou ocupa em cada momento na sociedade.

O contrato é o meio de sujeição do indivíduo, por simples manifestação ou formalização da vontade, a uma obrigação de entregar, fazer, pagar ou não fazer, mediante uma contrapartida sinalagmática a que, do mesmo modo, se obriga outro indivíduo. Em termos equitativos, um mesmo indivíduo perde liberdade e sujeita a liberdade do outro. O exercício da autonomia da vontade pode ter por efeito a redução da própria liberdade, pois o Estado assegura ao credor meios coativos de cobrança do seu direito, contra e independentemente da vontade do devedor.

O nosso Código Civil, datado de 1966, consagra um certo intervencionismo limitador da autonomia contratual individual. Imposição de princípios de ordem pública, proibições de abusos de posição dominante e de violações da boa fé, proteção de situações de dependência e muitas outras particularidades coartam aquela que seria a plena expressão do liberalismo económico. Alguns contratos, tendencialmente duradouros ou com efeitos reais, são especialmente regulados com vista ao equilíbrio e garantia das contraprestações ou à proteção das partes mais débeis ou suscetíveis de decidir em estado de necessidade. Mais recentemente o direito do consumidor inovou na proteção dos indivíduos perante as ações de massa das grandes empresas comerciais, assim como tantas outras normas protetoras têm sido criadas. Não obstante, são múltiplas e esmagadoras as soluções – jurídicas – que escapam ao controle e ao intervencionismo público.

A celebração de um contrato é portanto, para a generalidade dos indivíduos, um momento sacrificial. Não o faça sem estar bem aconselhado e sem ponderar todas as vertentes do negócio, incluindo as consequências em caso de incumprimento futuro (sempre imprevisível), tanto do lado do credor, como do devedor.

Consulte previamente um advogado. Ainda que já vinculado a um contrato, não creia na literalidade das suas cláusulas. O mundo das obrigações contratuais está cheio de surpresas, que um advogado pode antecipar e esclarecer.

A Exploração da Prostituição no Tribunal Constitucional

O acórdão nº 218/2023 do Tribunal Constitucional declarou inconstitucional o art. 169 do Código Penal, que tipifica o crime de lenocínio ou proxenetismo (chulagem): a exploração comercial lucrativa da prostituição de outrem.

Abre caminho para o negócio do futuro, o dos corpos, o único insubstituível na era cyborg.

O tribunal expende argumentação ambígua, centrada na liberdade de autodisposição do corpo e da sexualidade, quando o que parecia estar em causa na proibição vertida na norma é a proteção da última barreira da subordinação profissional, que é aquela que pode perder o genitivo na expressão “subordinação jurídica”, quando desce para lá da barreira da profissionalidade típica, a dos mesteres, constituindo um dos cernes da nossa sociedade de metecos (aqueles que trabalham para viver e que, precisamente por isso, são os que pagam impostos).

Não se percebe como será possível deixar tal atividade não regulamentada em termos de conteúdo funcional – nas vertentes laboral, liberal ou comercial – nem como será exercida, agora que é a única que não conhece regulamentação alguma. Menos ainda se percebe como pode, numa sociedade tão desigual, salvaguardar-se a dignidade humana, não só das pessoas que se prostituem como também das que entendem não o fazer.

O acórdão pode ser consultado em Acórdão.

General Data Protection Regulation (‘GDPR’)

EDPO (European Data Protection Office):

“On 4 May 2023 the European Court of Justice (‘CJEU’) published its decision (case no. C-300/21) in which it ruled that not any infringement of the General Data Protection Regulation (‘GDPR’) triggers the right to compensation provided by Art. 82 of the GDPR. The Court held that the right to compensation provided by Art. 82 of the GDPR requires (i) an infringement of the GDPR, (ii) a damage caused to the impacted individual, and (iii) a causal link between the infringement and the damage. The CJEU further ruled that there is no minimum threshold for damage claims. National Member States’ law need to define the criteria for assessing damages while ensuring that the compensation of a damage is comprehensive and effective.

Any company that is established in the European Union (‘EU’) or is otherwise subject to the GDPR, for example as the company offers goods and services to individuals in the EU, can be subject to a damage claim under the GDPR. Thus, this decision may concern any company with connections to the EU. The risk of damage claims is particularly high in case of data breaches and where individuals exercise their rights under the GDPR, such as access rights.”

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O Princípio da Igualdade e a Proibição de Discriminação

O Princípio da Igualdade perante as leis emergiu da Revolução Francesa, aquando da eliminação dos foros privativos da nobreza e do clero. Assenta numa tautologia, pois as leis têm em si a pretensão universal e geral de aplicação sobre todos, sem exceção. Traduz simplesmente uma ordem de obediência às leis, tal como o Estado as impõe, enquanto subordinação positiva independente do chamado direito natural que então vigorava.

Coube a Martim de Albuquerque (in Da Igualdade, Almedina, 1993) o mérito de demonstrar que o princípio da igualdade cede perante a diversidade das situações de facto ou, melhor, perante a especiosidade das leis e decretos-leis. As diferenças de tratamento por este ou por aquele aspeto de registo pessoal, social ou patrimonial, são recorrentemente declaradas constitucionais pelos tribunais comuns e confirmadas pelo Tribunal Constitucional.

E se daquele modo é tratado pelo poder político, deve acrescentar-se que também as situações da vida, as pessoas concretas e as particularidades que cada qual ou grupos organizados entendem dever valorar ou defender, na sua multiplicidade e variedade, não cabem num pretenso igualitarismo, que sugere instâncias totalizantes e relativizadoras dos direitos individuais, designadamente das minorias e dos direitos especiais. Por esse motivo o patético art. 13, nº 1 da Constituição não encontra paralelo na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH).

A proibição do arbítrio ou da discriminação, estatuída pelo art. art. 14 da CEDH, secundado pelo art. 13, nº 2 da Constituição, perante as leis ou perante a administração do Estado ou das organizações públicas e privadas, emerge dos direitos da pessoa humana e visa proteger sem tolher, sem, precisamente, discriminar, em vez de subordinar o particular à igualdade do geral.

O acórdão do Tribunal Constitucional de 19/05/2015 perfilhou o entendimento de que só há proibição do arbítrio se se provar que não tem a justificá-lo um qualquer fundamento político e que só há proibição de discriminação se ofender algumas das características pessoais a que alude o art. 13, nº 2 da Constituição (ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual). Erra, porém. Aquelas características não são as únicas protegidas pela norma, que não é taxativa, nem categórica, e é interpretada a partir da CEDH e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) (por força do art. 8 da Constituição). Depois, a proibição abrange os privilégios e benefícios injustificados, donde tanto a ofensa como o tratamento de favor integram o conceito de discriminação. Por fim, é sobre o legislador que deve impender o dever de fundamentar a bondade não discriminatória das medidas, enquanto destinatário principal daquela norma.

O “Lexionário” do Diário da República Eletrónico especifica uma pretensa “obrigação de “tratar igualmente o que é igual e desigualmente o que é diferente””, que seria expressão da igualdade positiva, enquanto a proibição da discriminação seria uma manifestação negativa da mesma igualdade. Incomoda a ostensividade da contradição (tratar desigualmente sem discriminar) e a ablação do destinatário daquela obrigação de tratamento. As coisas e os tratos não têm por si proteção jurídica alguma. A norma obriga e protege o ser humano, seu sujeito e destinatário. A natureza do humano gera diferenças radicais entre indivíduos, que todavia nunca podem fundar discriminações. A diferença não tem carácter positivo, é co-natural. A proibição da discriminação é tanto negativa quanto positiva (tem atuado como instrumento de modificação da sociedade e da lei). É impróprio qualificar medidas que visam reduzir desigualdades sociais como “discriminação positiva”. A caridade ou o apoio social não discriminam quem mais tem.

Tal tipo de considerandos têm andado há excessivos anos pelas sebentas de direito. Gomes Canotilho e Vital Moreira, par histórico da doutrina constitucional portuguesa, teorizaram a possibilidade de restrição dos princípios pela “necessidade de proceder à conciliação com outro direito fundamental ou interesse constitucional suficientemente caracterizado e determinado, cuja satisfação não possa deixar de passar pela restrição de um certo direito fundamental” (in Fundamentos da Constituição). Teorizaram portanto o esvaziamento dos direitos constitucionais, desde logo o da proibição da discriminação, perante dificuldades de conjuntura socio-económica ou perante conflitos estatutários (desde logo o da nunca esquecida dignidade do Estado). Costuma-se empregar o brocardo “os direitos não são absolutos”, quando se pretende reduzi-los ou negá-los, operação sempre justificável, se advinda do interesse dominante, pois a panóplia e a ambiguidade dos direitos facilita a sua hierarquização de acordo com a questão em jogo. Sucede porém que tal esvaziamento contraria de modo muito expresso a DUDH, aprovada pela ONU em 1948, cuja leitura e exercício de aplicação efetiva se impõe com caráter urgente em Portugal. Aconselha-se a leitura da versão oficial aqui disponível.

Regressemos ao art. 13, nº 1 da Constituição. Dispõe: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. Opera uma concatenação parcial dos artigos 1 e 7 da DUDH, que se refere a todos os seres humanos e não apenas aos cidadãos portugueses – nem faz sentido excluir da proteção da norma os demais indivíduos. O ser humano deve ter, de modo intrínseco e essencial, reconhecimento público, enquanto indivíduo fundador da sociedade e do Estado. É pois problemático que se lhe acrescente um atributo de dignidade, elemento afinal supérfluo, posto que a essência humana a pressupõe naturalmente. A expressão “dignidade social” tem assim um carácter redutor, preocupante. A DUDH reserva a dignidade às garantias de existência condigna, no sentido de não explorada social e economicamente para lá de limites mínimos de qualidade de vida e respeito. A Carta dos Direitos Fundamentais da UE dispõe mais claramente, no art. 1º: “A dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida.”

O art. 13, nº 1 da Constituição, como dissemos acima, é patético, no sentido popular de “dá dó”, pelo que deve ser revisto numa próxima oportunidade.

CRÍTICA DO DIREITO PENAL

O processo penal regula a aplicação de penas pelo Estado. Pela sua própria natureza, a ação do Estado surge pré-justificada, incluindo o exercício da violência (é o que se denomina Estado de Direito). Penas são castigos infligidos a uma pessoa, enquanto sanção pela prática de condutas que o Estado tipificou como crime. Crime é o desvio ou a ação contrária ao dever de respeito da norma imposta pelo Estado. A pena afere-se pelo interesse (eufemisticamente “necessidade”) de punir. A medida da pena desdobra-se sobrepujando o brado da ofensa, a qualidade do ofensor e o custo do exercício da punição.

A raridade do crime funda a ordem social. O Estado tende a descriminalizar as condutas que se tornam vulgares (por exemplo, o consumo de droga ou o não pagamento de cheques de garantia). É tipificado como crime o que ofende a autoridade do Estado, nas vertentes de monopólios do poder, da segurança, da fiscalização, da condução de atividades, e pode servir, quando perseguido, de efetivo meio de domínio social. Nem todas as condutas lesivas ou benefícios ilícitos são criminalmente punidos. O desvalor da moral tradicional ou da ética política nem sempre encontram tutela penal (por exemplo, o incesto ou o exercício de cargo político com negligência grosseira não são criminalizados em Portugal).

O crime precede a ação penal. Por regra, a pena não pode pretender a reparação do prejuízo realizado pela conduta típica. A ação penal contem assim uma carga negativa, de impotência, decorrente da impossibilidade de reconstituição da vida vivida. A pena é reativa. Por um lado, marca e constrange o agente do crime, por outro, sossega o ânimo social e reitera a força pública. Deste paradoxo resulta a encenação de um procedimento formal, o processo, que distancia o ato criminoso do seu julgamento para, de algum modo, conferir à aplicação da pena um sentido jurídico, uma racionalidade contida num feixe de conceitos antigos (culpa) e modernos (responsabilidade), pois a pena tem de surgir pré-justificada, enquanto ação do Estado (ressocialização).

A pena não cuida, senão lateralmente, da reparação do interesse da vítima e refuta o sentimento de vingança. A razão afasta, desde logo, qualquer proporcionalidade entre o sofrimento da vítima e o sofrimento infligido pela pena ao agente do crime. A desconsideração do indivíduo obriga a elucubrações, que deslocam a perspetiva do crime para o geral e abstrato. Tome-se a teoria do bem-jurídico protegido, ainda dominante, que supõe subjacente à tipificação do crime um valor desmaterializado mas elevado, como a saúde ou o património, caindo em problematizações puramente metafísicas, que bastas vezes redundam em aporias. O crime negligente, cometido por falta de cuidado ou imperícia, põe a nu a arbitrariedade da culpa relativamente ao dano, do perigo relativamente à pena, do agente do crime relativamente à pretensão de reintegração na sociedade por efeito da pena (ressocialização). A interpretação e aplicação da norma penal (subsunção pretensamente autopoiética) acaba por se deixar interpenetrar por motivações socio-políticas, de que resulta a ostensiva oscilação histórica. Por exemplo, os crimes contra a honra, sem alteração legislativa alguma, conhecem atualmente franca reinterpretação jurisprudencial, de modo que deixou de ser crime o que há poucos anos o era.

A pena é assim distinta do crime. O interesse do Estado tem-lhe acoplado um fim de dissuasão (eufemisticamente “prevenção geral”): o sofrimento do condenado é exibido como exemplo disciplinar dos potenciais infratores. O enorme alargamento da interferência do Estado na organização e funcionamento da sociedade tem trazido a proliferação da tipificação de novos crimes, sob o aparente propósito de dissuadir comportamentos de risco.Mas o efeito dissuasor das penas é escasso (o furto é recorrente nalgumas sociedades apesar da ancestral punição; a condução de veículo sem habilitação conhece plúrimas reincidências).

Em vez de dissuadir o potencial criminoso, a ameaça da pena subordina a generalidade dos indivíduos à autoridade do Estado. E acarreta um efeito de especialização da sociedade. Os indivíduos são forçados a adotar procedimentos complexos para se manterem afastados da suspeita de condutas incrimináveis (compliance, deontologia, moral procedimental). Esse efeito modifica comportamentos, direciona fluxos, contribui para o desenvolvimento de boas práticas nos negócios, por exemplo, com os consequentes custos de contexto, mas acarreta o incremento da vigilância do Estado e dos próprios indivíduos entre si, como também cria organizações criminosas e marginalidade, causadora de focos de crime recorrente. Na realidade, o mal radical não encontra censura bastante num sistema instituído como meio tutelar da cidadania, e acabam por ser precisamente os cidadãos os mais atingidos pela ameaça da mácula penal, dispersa e multiplicada por uma miríade de ilícitos menores.

O direito penal pré-justifica o carácter policial das sociedades contemporâneas. Entende-se por polícia a intervenção da autoridade do Estado no exercício das atividades individuais. Os princípios que o regem pertencem ao utilitarismo, positivismo e neoliberalismo (enquanto técnica de adequação dos meios às necessidades de regulação do comportamento humano).

Violência Económica

Segundo o artigo 3º da Convenção de Istambul, aprovada por Portugal, considera-se violência doméstica “todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima”.

Todavia, o artigo 152º do Código Penal, que criminaliza a violência doméstica, exclui a violência económica.

A violência económica, neste contexto, abrange as condutas intencionais que ofendem o interesse patrimonial do cônjuge ou companheiro, privando-o de rendimentos, de abrigo ou de bens materiais. Uma das condutas geradoras de graves danos – que por vezes leva à insolvência – consiste na falta de contribuição para o pagamento das prestações de empréstimo hipotecário da casa de morada. Outra conduta frequente traduz-se na privação da habitação habitual.

Em geral, são as mulheres as principais vítimas destes comportamentos negativos, o que permite considerar tratar-se de um tipo de violência de género.

A desproteção legal das vítimas de violência económica e a impunidade esperada pelos infratores incrementa os casos, alguns bem perturbadores.

Torna-se necessário recorrer a providências cautelares cíveis (processos urgentes destinados a acudir a situações inadiáveis) para proteção de rendimentos, património, habitação e alimentos. São o caminho possível, no estado atual do nosso direito.