Cervantes, vítima da usurpação e contrafação do seu D. Quixote de la Mancha, de 1605, deu involuntariamente o mote para a instituição do regime de proteção de direitos de autor alguns séculos depois. A pretensa centralidade do humanismo europeu, com as suas técnicas de diferenciação e subordinação (na eufemistíca, princípios de igualdade e proporcionalidade), tributárias do iluminismo, hoje votadas à criação e controle de fluxos financeiros, conduziu os direitos de autor a um sistema de rendas fixas gerido autoritariamente. Fez-se uma extensão prática do sistema de copyright americano, com terminologia autónoma, bem mais complexa.
Do emaranhado de meias palavras da legislação portuguesa e europeia, que obriga os tribunais a repetidas e contraditórias interpretações e confere palco a eminências pardas do doutrinalismo (técnicas não democráticas, que retiram aos sujeitos a autonomia da compreensão do direito e a transferem para autoridades reconhecidas pelo sistema, à semelhança da hermenêutica dos textos sagrados), abordamos a problemática dos deveres que impendem sobre os estabelecimentos comerciais com música ambiente (a TV do café da esquina, por exemplo).
Protegendo-se a autoria da música e da letra, todos os registos e todas as transmissões dependem do acordo dos respetivos autores. Os artistas (instrumentistas e intérpretes) gozam de “direitos conexos com os direitos de autor”. A tecnologia abriu uma imensidão de possibilidades de registo, suporte, transmissão e retransmissão das mesmas gravações, portanto de domínio da exploração das obras musicais por empresas especializadas, que adquirem os direitos aos autores e os cedem a produtores e divulgadores de conteúdos. A obra que se escuta na TV ou na rádio passou já por tais processos de contratualização e de autorização, com contrapartidas e remunerações. Cada utilização ou reutilização confere aos autores direito a uma “remuneração equitativa”, cobrada por entidades representativas (que ficam obrigadas a distribui-las pelos autores, por critérios quantitativos e de equidade) (art. 33 da Lei n.º 26/2015). O desrespeito da remuneração equitativa pode constituir responsabilidade penal (crime de usurpação) e civil (dever de indemnizar).
Entende-se que o estabelecimento que difunde música ambiente no seu espaço comercial faz uma nova utilização, explora um efeito sonoro. Pratica um ato de comunicação ao público da obra musical, qualificado pelas diretivas 92/100/CEE, 2001/29/CE e 2006/115/CE do Parlamento Europeu, hoje incorporadas no direito português. Todavia, “definir quando ocorre comunicação ao público é uma operação complexa”, como tem sido reconhecido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (seguimos Nuno Sousa e Silva, “Direitos Conexos” (www.ptcs.pt)).
A TV ligada numa área aberta ao público gera uma obrigação de autorização/pagamento prévio. E se estiver desligada? Ou se difundir conteúdo próprio? Se não emitir som? O aparelho de rádio ou os meios de reprodução próprios têm idêntico tratamento? E a disponibilização de rede de Internet para que o cliente aceda a conteúdos protegidos pelo seus próprios meios, com ou sem amplificação? A smart TV no youtube ou no spotify tem o mesmo tratamento de um canal de música da TV ou da rádio? Há diferença entre a TV por cabo e a hertziana? Tais diferenças aplicam-se à rádio? As respostas estão tão inseguras quanto o gato da experiência de Schrödinger. Chega-se ao anedotário: a mera disponibilização dos meios de reprodução não configura divulgação, mas a TV do quarto alugado, ainda que isolada no alto de uma montanha ou no fundo de um lago, e que nunca venha a ser ligada pelo cliente, constitui ato de comunicação. Tal absurdo suscitou a particularidade: o rádio de um autocarro de passageiros faz um ato de comunicação, e o rádio de um automóvel alugado? O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), na decisão de 02/04/2020 (Proc. C-753/18) isenta-o. E o rádio de uma carrinha de transfer de passageiros ou o de uma limousine com condutor e serviços de catering? Aguardam-se os próximos acórdãos. A reprodução de fonogramas expressamente adquiridos para divulgação estará isenta (Acórdão da Relação de Guimarães de 18/12/2017 e do TJUE de 18/11/2020 (Proc. C-147/19), o que não transparece dos “tarifários” das entidades gestores de direitos.
Depois de longa discussão (leia-se a Recomendação do Provedor de Justiça 4/B/2002), Portugal conheceu o feito notável de não responsabilizar criminalmente os estabelecimentos pelas TV ligadas (Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ, de 13/11/2013). A decisão do TJUE de 14/07/2015 (processo C-151/15) impôs a responsabilização. Recomeçou a dança de acórdãos em torno do crime de usurpação. Aquele “ato de comunicação ao público” não coberto pela “tarifa” preenche os pressupostos do crime? Cá temos o gato de Schrödinger. À partida dir-se-ia que ocorre apenas violação das disposições que impõem o pagamento prévio, contraordenação a que pode acrescer eventual responsabilidade civil (acórdãos da Relação de Coimbra de 22/05/2019 e 26/06/2019). Mas outros julgam que a falta de pagamento traduz falta de autorização e condenam (acórdãos das Relações de Évora de 20/03/2018, do Porto de 29/01/2020). Há ainda acórdãos que, mostrando-se provado que os arguidos estavam informados pela jurisprudência de 2013, absolvem com fundamento no erro sobre a ilicitude (Relações de Coimbra de 27/06/2018 e do Porto de 15/02/2019). Parece é que a problemática não se deixa confinar à figura da ilicitude e que envolve o princípio da intervenção mínima do direito penal, posto que as obras em causa foram irredutivelmente lançadas à divulgação pública, de modo temerário. Soma-se a incerteza do direito e a consequente incerteza da sua violação, que não podem ser resolvidas casuisticamente sem violação do princípio constitucional da segurança jurídica.
Perante tantas especificidades, em caso de dúvida, pague – ou opte pelo silêncio, em favor do ambiente e da saúde auditiva. Os direitos de autor são geridos pela Sociedade Portuguesa de Direitos de Autor e os direitos conexos pela PassMúsica (marca da Audiogest, que representa os produtores, e GDA, os artistas). Nuns casos são devidas “tarifas” a ambas, noutros só à primeira. Um pequeno quebra cabeças para quem estudar modalidades de poupança. Em 2016, foi anunciado um acordo para um “Balcão único de licenciamento” (art. 37 da Lei n.º 26/2015), que não funciona. As tarifas negociadas com associações representativas de empresas utilizadoras de música aplicam-se também às empresas não associadas (art. 41,3 da Lei n.º 26/2015). Os acordos deveriam ser públicos, mas recebem apenas o anúncio do “depósito” na IGAC. Sem que se perceba a legalidade, são facilitados descontos às empresas associadas. Em geral, as “tarifas” portuguesas parecem mais caras que as espanholas e mais baratas que as francesas – matéria intrigante, posto que boa parte da música difundida tem produção estrangeira.
As “tarifas” seguem para as grandes empresas que controlam a música mais escutada e que, na mira da receita, controlam os meios de difusão – que fazem com que essa mesma música seja a mais escutada, desvirtuando a programação de rádios e televisões. Pequenos detalhes contribuem ainda para tal efeito: a “tarifa” cobrada ao estabelecimento pela difusão da TV é mais barata que a da música escolhida pelo estabelecimento e não cobre a da rádio, o que explica que a maioria disponha apenas de TV e que a música mais escutada se torne hegemónica contracultura. Os pequenos autores e artistas locais são gravemente prejudicados, pois a sua divulgação torna-se mais custosa do que o simples ligar da TV ou da rádio, em que eles não têm lugar. Os géneros musicais menos escutados quase desaparecem dos grandes meios de difusão. A música torna-se repetitiva, aditiva, serviente de padrões de ritmo e de ruídos de fundo prejudiciais à saúde mental.